Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Estás só. Ninguém o sabe.

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
 
Farnando Pessoa (Ricardo Reis)

Atrás Não Torna

Atrás não torna, nem, como Orfeu, volve
Sua face, Saturno.
Sua severa fronte reconhece
Só o lugar do futuro.
Não temos mais decerto que o instante
Em que o pensamos certo.
Não o pensemos, pois, mas o façamos
Certo sem pensamento.
 
 
Fernando Pessoa

Antes de Nós

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia
E as folhas não falavam

De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.
Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforça à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.
Se aqui, à beira mar, o meu indício
Na areia do mar com três ondas o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

O Mãos Trocadas

 
leiam, é muito engraçado

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Já não vivi em vão se escrevi bem uma canção

Já não vivi em vão
Se escrevi bem
Uma canção.
 
A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?
 
Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.
 
 
Pessoa, Fernando. Poesia: 1918-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 279

Supõe

Chico Buarque

Supõe que já cruzamos pela vida
Mas nos deixamos sempre para trás
Porque eu andava sempre na avenida
E tu corrias pelas transversais

Supõe que num comício colorido
A praça, enfim, vai nos conciliar
Supõe que somos do mesmo partido
Supõe a praça a se inflamar
Bandeiras soltas pelo ar
E tu começas a cantar
Supõe que eu vibro, comovida
E supõe que eu sou tua canção

Supõe que te apresentas como amigo
E me perguntas nome e profissão
Comentas que faz sol, ou tem chovido
Ou outro comentário sem razão
Supõe que eu te observo, compreensiva
Porém não tenho nada a acrescentar
Supõe que falas coisas dessa vida
Como querendo aparentar
Que tu tens muito o que contar
Que és um tipo original
Supõe que rio, divertida
E supõe que eu sou tua canção

Supõe que nós marcamos um cinema
Mas chegas lá pro meio da sessão
Pois teu trajeto tem algum problema
Que só te leva numa direção
Supõe que agora a tela me ilumina
Tu ficas assistindo ao meu perfil
Supõe a minha mão tão recolhida
Que não percebe a tua mão
Que não percebe a minha mão
Que não é sim, que não é não
Supõe que eu sigo distraída
E supõe que eu sou tua canção

Supõe que a boa sorte é nossa amiga
E que das 3 às 5 pode ser
Meu pai acaba que dobrar a esquina
E tu vens me encontrar, enfim mulher
Supõe que sem pensar nos abraçamos
Supõe que tudo está como previmos
É a primeira vez que nos amamos
Supõe que falas sem parar
Supõe que o tempo vem e vai
Supõe que és sempre original
Supõe que nós não nos despimos
E supõe que eu sou tua canção

fonre: http://letras.terra.com.br/chico-buarque/86056/

sexta-feira, 14 de maio de 2010

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas

Não venhas setntar-te à minha frente, nem a meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
E só quero dormir.
 
Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.
 
Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".
 
As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.
 
Por isso, se vieres, não te sentes ao meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que não me rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.
 
Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e as ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.
 
Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem lhe saber o passado.
 
E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.
 
 
Pessoa, Fernando. Poesia: 1918-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 283
 
 

Do cais morto e do barco ido.

Uma só luz sombreia o cais,
Há um som de barco que vai indo.
Adeus! Não nos veremos mais!
A maresia vai subindo.
[...]
 
E no desdobre da memória
O viajante indefinido
Ou ve contar-se só a história
Do cais morto e do barco ido.
 
 
Pessoa, Fernando. Poesia: 1918-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 263

De mim é que estou cansado

Estio. Uma brisa ardida
Passa no ar abrasado.
Não estou cansado da vida:
De mim é que estou cansado.
 
E como na tarde sumida
O sol baço luz sem rir,
Tenho que sorrir à vida
Sem ter vida a que sorrir.
 
Pessoa, Fernando. Poesia: 1918-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 254

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